Portugal e a Revolução dos Cravos, sob a perspectiva de Alexandra Alpha, de José Cardoso Pires[1]

 

Portugal y la Revolución de los Claveles, desde la perspectiva de Alexandra Alpha, por Cardoso Pires

 

Portugal and the Carnation Revolution, from the perspective of Alexandra Alpha, by José Cardoso Pires

 

Adriano Guedes Carneiro

[email protected]

Universidade Federal Fluminense

https://orcid.org/0000-0002-5830-5128

 

Karina Frez Cursino

[email protected]

Universidade Federal Fluminense

https://orcid.org/0000-0001-8571-1706

 

Recibido: 21-12-2022

Aceptado: 29-03-2023

 

Cómo citar este documento:

Guedes C., A. & Cursino, K. F. (2023). Portugal e a Revolução dos Cravos, sob a perspectiva de Alexandra Alpha, de José Cardoso Pires. Revista Científica Cuadernos de Investigación, 1, e4, 1-11. https://cuadernosdeinvestigacion.unach.cl/index.php/rcci/article/view/e4

Resumo

Este ensaio tem como principal objetivo refletir acerca da temática da Revolução dos Cravos no romance Alexandra Alpha (1987), de maneira a pensar no diálogo que tal obra estabelece entre literatura, política e história, defendendo uma possível inquietação do autor com uma possibilidade de esvaziamento dos ideais revolucionários após o 25 de Abril, considerando que os mesmos poderiam perder força com o conturbado período político pós-revolução. Associar-se-á este cenário com o mito de Ícaro, pois o mesmo é sustentado em diversas passagens do romance, através do voo, como que a configurar a efemeridade da Revolução, enquanto momento de grandeza, tal qual as conquistas marítimas do grandioso passado português. Para percorrer tal objetivo, o livro é pensado desde suas características multifacetadas que permitem enxertar outros gêneros em sua composição até seu conteúdo, levando em consideração ainda seus personagens e o foco narrativo. A análise da narração vai sendo construída juntamente a exposições sobre o contexto pré e pós-revolucionário, aproximando dessa maneira a elaboração dos elementos fictícios dos fatos ocorridos no país. Foram ainda considerados alguns levantamentos sobre o neorrealismo e a relação do autor com tal movimento, destacando pontos de aproximação e de afastamento com tal abordagem.

Palavras-chave: Revolução, Literatura, Totalitarismo, Portugal.

Resumen

El objetivo principal de este ensayo es reflexionar sobre el tema de la Revolución de los Claveles en la novela Alexandra Alpha (1987), con el fin de pensar el diálogo que dicha obra establece entre literatura, política e historia, defendiendo una posible inquietud de la autora. con posibilidad de vaciamiento de ideales revolucionarios a partir del 25 de abril, considerando que podrían perder fuerza con el convulso período político pos revolucionario. Este escenario estará asociado al mito de Ícaro, tal como se sostiene en varios pasajes de la novela, a través de la fuga, como configurando lo efímero de la Revolución, como un momento de grandeza, al igual que las conquistas marítimas del grandioso pasado portugués. Para lograr este objetivo, el libro está pensado desde sus características multifacéticas que permiten injertar en su contenido otros géneros en su composición, teniendo en cuenta también sus personajes y el enfoque narrativo. El análisis de la narración se construye junto con exposiciones sobre el contexto pre y pos revolucionario, acercando así la elaboración de elementos ficcionales a los hechos ocurridos en el país. También se consideraron algunos levantamientos sobre el neorrealismo y la relación del autor con tal movimiento, destacando puntos de aproximación y alejamiento de tal enfoque.

Palabras clave: Revolución, Literatura, Totalitarismo, Portugal.

Abstract

The objective of this essay is to reflect on the theme of the Carnation Revolution in the novel Alexandra Alpha (1987), in order to think about the dialogue that such work establishes between literature, politics and history, defending a possible concern of the author with a possibility of emptying of revolutionary ideals after the 25th of April, considering that they could lose strength with the troubled post-revolution political period. This scenario will be associated with the myth of Icarus, as it is sustained in several passages of the novel, through flight, as if configuring the ephemerality of the Revolution, as a moment of greatness, just like the maritime conquests of the grandiose past Portuguese. To achieve this objective, the book is thought from its multifaceted characteristics that allow grafting other genres in its composition to its content, also taking into account its characters and the narrative focus. The analysis of the narration is built together with expositions about the pre- and post-revolutionary context, thus bringing the elaboration of fictional elements closer to the facts that occurred in the country. Some surveys on neorealism and the author's relationship with such a movement were also considered, highlighting points of approximation and departure from such an approach.

Key words: Revolution, Literature, Totalitarism, Portugal.

 

Introdução

O presente ensaio tem por objetivo refletir a respeito da Revolução dos Cravos, em Alexandra Alpha (1987), romance de autoria de José Cardoso Pires. Principalmente, repercutindo passagens e acontecimentos que permitam estabelecer interações entre literatura, política e história. Buscar-se-á identificar, por meio da metáfora do voo, – simbolizada pelo mito de Ícaro a construção da ideia da impermanência, da efemeridade do processo revolucionário português. É fato que o movimento de 25 de abril mergulhou Portugal em uma conjuntura de transformação sociocultural e política que se apresentou como fim do período ditatorial do Estado Novo, mas também como uma imensa possibilidade para a construção da justiça social, da democracia e de um governo verdadeiramente voltado para o bem-estar social da população. No entanto tal não se refletiu na realidade.

Alexandra Alpha permite estabelecer a discussão sobre o período ditatorial português, uma vez que a narrativa se passa em anos anteriores ao movimento revolucionário, chegando até a alguns anos posteriores a ele. Assim pensaremos nos questionamentos que podem ser levantados sobre a Revolução de 25 de abril de 1974, sobretudo na parte do livro intitulada de Ascensão e morte – pois, como o título já diz, ascenção e morte da revolução, como um voo do homem-pássaro, celebração e esquecimento dos ideais revolucionários.

Alexandra Alpha

Alexandra Alpha foi publicado treze anos após a madrugada que depôs o regime ditatorial, naquele momento encabeçado por Marcello Caetano que tinha sucedido António de Oliveira Salazar. Regime que vigorou em Portugal durante 48 anos. O romance apresenta ao leitor uma espécie de painel da sociedade portuguesa dos anos imediatamente anteriores e posteriores à Revolução dos Cravos. O livro convoca a reflexão sobre este contexto, através da ficção literária. A composição da narrativa gira em torno, principalmente, da vida de Maria Alexandra, a personagem principal: uma mulher portuguesa, independente e especialista na área de marketing da empresa Alpha Linn. A narrativa é constituída a partir das notas pessoais deixadas por ela num conjunto de textos, composto por diários, poemas, lembranças, intituladas Papéis de Alexandra Alpha:

Alexandra Alpha faleceu a 14 de novembro de 1976. Além duma comunicação sobre Identité Sociale et Marketing, publicada nas actas do II Simpósio Internacional de Publicidade, Lausanne, 1970, deixou um esboço de tradução do Journal of a Voyage to London, de Fielding, alguns breves apontamentos de leitura e várias notas pessoais gravadas em fita magnética. Desse conjunto, vulgarmente designado por <<Papéis de Alexandra Alpha>>, que se encontra actualmente nos arquivos do 10º cartório notarial de Beja, transcreveu ou adaptou o autor algumas referências incluídas neste romance e disso deixa público reconhecimento ao legal depositário (Pires, 1988; p. 9).

 Esse conjunto parece ser a base para edificar a trama, reconstituindo a vida da protagonista1 e também das pessoas que de alguma forma foram ligadas a ela. Paralelo à existência da personagem, sua vida pessoal, vai se desenrolando, como pano de fundo, a descrição dos fatos ocorridos num período de aproximadamente quinze anos, entre 1961 e 76.

O romance é estruturado em três partes. A primeira, chamada de O prólogo (pp. 8 a 16), inicia-se como foco na morte de um homem que logo será identificado como Roberto Waldir, rapaz brasileiro de personalidade um tanto duvidosa com quem Alexandra se envolveu enquanto esteve no Brasil a trabalho. Traz-nos o texto do romance:

O anjo sobrevoou a cidade às 12.00 – 12.27 (hora solar). Era louro e de asas vermelhas e tinha um belo rosto triangular em nada semelhante ao dos querubins de igreja. Planou em lentas e tranquilas curvas por cima dos arranha-céus e das praias que contornavam a cidade, percorrendo-os com a sua sombra (…) De concreto, sabia-se que a vítima fora atingida por dois disparos de arma de fogo no tórax e na região abdominal, depois de terem perfurado as asas do aparelho, sendo de admitir que o matador ou matadores a tivessem alvejado do terraço dum arranha-céus (Pires, 1987; p. 9).

Cardoso Pires compara o voo de Waldir com Ícaro: “Efetivamente, ele representava o castigo da vaidade de Ícaro transposta dos mitos antiquíssimos para as realidades do nosso tempo” (Pires, 1987; p. 11). Do envolvimento com ele, a publicitária acaba se responsabilizando por cuidar do filho do mesmo, chamado Beto, que é levado para Lisboa quando do retorno de Alexandra à capital portuguesa, após a morte do pai do menino.

A segunda e maior parte do livro: A cor da pérola (pp. 18 a 284), traz a seguinte epígrafe: “Então eu lembrei-me daqueles versos do Herberto Helder que falam de cidades cor de pérola onde as mulheres existem velozmente” (Pires, 1987; p. 17). Os versos escolhidos para abrir essa parte já indicam a presença e potência das figuras femininas que ocuparão essa extensa seção do livro: Alexandra, Maria e Sophia.

Em A cor da pérola são apresentadas as personagens que circundam Alexandra: suas vidas e seu envolvimento com o contexto de mudança que se instaurava em Portugal. Ela compreende o período até o momento da Revolução, quando é descrita a euforia do povo nas ruas. Passa-se inteiramente em Portugal e cobre o final da década de 60 até o momento imediatamente posterior ao 25 de abril de 1974. Ocupa um total de sete capítulos.

A terceira e última parte é chamada de Ascensão e morte, e tem início na página 286 e vai até o final do livro. Apresenta-se com a epígrafe dos papéis de Alexandra Alpha: “Círculos… repetimo-nos em círculo fechado, passamos a vida a repetir pessoas, a repetir situações. Depois, quando o círculo rebenta, subimos na vertical” (Pires, 1987; p. 353). Ocupa três capítulos e conta desde a pós-revolução até a morte de Alexandra, Maria e do ex-padre Miguel na explosão do avião.

No que diz respeito ao conteúdo, o romance apresenta uma escrita que se mostra revolucionária em sua escolha temática, pois o autor se propõe assumidamente a trazer como principal assunto da narrativa a própria Revolução, oferecendo ao leitor um esquema que constrói o diálogo entre literatura e história, destacando ficcionalmente os momentos anteriores e posteriores ao dia 25 de Abril de 1974. Percebe-se dessa maneira que o tema proposto por Pires pode revelar um de seus pontos de encontro com o neorrealismo, uma vez que o escritor dialoga com tal movimento, ora estabelecendo pontos que o aproximam ora o afastam do mesmo.

Petar Petrov (2003), no artigo intitulado O Realismo e os ‘Realismos’ da obra de José Cardoso Pires, reflete sobre as aproximações e afastamentos da escrita de Cardoso Pires com o neorrealismo português durante toda a sua trajetória como escritor. Além de apresentar em suas obras traços desta corrente, o autor de O delfim (1978) também traz muitas influências de outros contextos que não o português, como foi o caso das short-stories da chamada ‘geração perdida’ norte-americana (Ernst Hemingway, John dos Passos, Scott Fitzgerald, por exemplo) que influenciaram seus textos de 1949, como Os caminheiros e outros contos.

Esse diálogo com o neorrealismo apresenta-se, por exemplo, no interesse que Cardoso Pires demonstra na tarefa de tecer críticas assertivas à sociedade portuguesa, dominada pela política salazarista. No entanto, mesmo o tom de denúncia ganha nas mãos do escritor um perfil marcado pela originalidade que por vezes o distancia dos escritos costumeiros neorrealistas, ao construir uma abordagem diferenciada na forma como lida e expõe as lutas sociais:

Do ponto de vista semântico-pragmático pode-se dizer que a prosa de estreia de José Cardoso Pires se compatibiliza com a visão neorrealista pelo seu elevado teor de crítica a uma sociedade, espaço de injustiças e desigualdades. No entanto, a sua escrita manterá o compromisso com a realidade de uma forma inovadora, diferente do estilo sentimentalista, cujos propósitos de comover o leitor com “a lenga-lenga e o choradinho” (Cruz, 1972b; p. 18) imbuíam muitos textos na altura. A demarcação de uma criação com propósitos normativos, própria de uma literatura que se quer comprometida, ocorrerá com a adoção de um novo modo de observação e representação, que caracterizará quase toda a ficção posterior do escritor (Petrov, 2003; p. 284).

Petar Petrov entende que, junto a Balada da praia dos cães (1982), o texto de Alexandra Alpha inaugurará uma nova fase na obra do autor, com “feições realistas e pós modernas, pois, na tentativa de se examinar mais criticamente a história portuguesa mais recente” (Petrov, 2003; p. 290), Cardoso Pires lançará mão da metaficção historiográfica como foi objeto do estudo de Linda Hutcheon, como retorno ao passado, sob um olhar crítico, fragmentado e questionando a própria história. Pois, em 1987 – data da publicação do romance – já há um distanciamento temporal com relação à Revolução dos Cravos e mesmo ao salazarismo, o que permitirá ao autor uma maior reflexão sobre o ocorrido e melhores condições para refletir, investigar e analisar mais detidamente esses eventos históricos.

A obra de Cardoso Pires possui características peculiares nesta fase, tais como o experimentalismo, sobretudo, após a publicação de O anjo ancorado (1958) - obra de transição entre o neorrealismo e a fase de maior experimentação e subjetividade, que alcançará a sua forma definitiva com O delfim (1968). Para muitos a sua obra-prima. A fragmentaridade é outra característica que estará presente, principalmente, em Alexandra Alpha, e na sua prosa pós-revolução – à exceção de A balada da praia dos cães, cuja estrutura e unidade se encerram nos dispositivos do gênero do romance policial. Há também a presença de uma “instabilidade ontológica (por exemplo, a migração de personagens de um livro para o outro, como acontece com Sebastião Opus Night, que vai reaparecer em Lisboa – Livro de Bordo, de 1997)” (Pereira, 1999; p. 250).

As personagens também parecem acompanhar esse fluxo mutável e não estável, apresentado na construção de Alexandra Alpha, pois os mesmos parecem seguir as transformações de maneira a acompanharem as situações e se modificarem tal qual o contexto em que se encontram inseridos. Um exemplo pontual dessa vulnerabilidade no posicionamento destas é a mudança na forma de vestir-se da protagonista ao longo do livro. Alexandra em grande parte do enredo é descrita em trajes elegantes. No entanto, sua vestimenta acompanha as transformações revolucionárias do país, pois: “Como nesse dia, Alexandra ia de fugida e, quase de certeza, com os mesmos jeans e com a mesma canadiana a pingar-lhe até aos joelhos” (Pires, 1988; p. 331).

A elite portuguesa, como estrato social, é um dos alvos principais da crítica da pena literária de Cardoso Pires, neste romance. Diferentemente da maioria de suas obras as quais trazem reflexões sobre pessoas pertencentes a estratos sociais mais marginalizados, como é o caso dos contos presentes em Jogos de Azar (1963) ou em O hóspede de Job (1963). Em Alexandra Alpha, o enredo se desenvolve majoritariamente a partir de figuras pertencentes às camadas mais altas da sociedade. As personagens apresentam-se em conformidade com o contexto social no qual estão inseridas. No entanto, o autor diversifica o foco dos conflitos:

Todavia, a originalidade da escrita cardoseana estará no tratamento dos conflitos que, diferentemente da visão do Neorrealismo de escola, não se apresentam somente como resultado das relações entre classes antagônicas, encaradas em moldes mecanicistas de exploradores/explorados, mas atingem indivíduos do mesmo grupo social (Petrov, 2003; p. 284).

A personagem principal do livro, Alexandra Alpha, constrói-se juntamente ao romance pelo viés do fragmento, do múltiplo e da mutabilidade das coisas, dando ritmo ao livro. O título deriva do nome da protagonista e do local onde exerce a sua atividade profissional: “e declarada como Maria Alexandra, secretária de empresa, solteira e natural de Lisboa” e “…da Administração da firma Alpha Linn (Brasil) Publicidade SA., onde Alexandra, a declarante, exercia o cargo de especialista de marketing” (Pires, 1987; p. 13):

Alguém disse que a segurança de Alexandra estava na sua capacidade de mulher dividida. Mulher dividida, de dia guerra e à noite vida. Assim seria, ela saía todos os dias das batalhas da Alpha Linn e entrava nas madrugadas do Antonio’s em Ipanema, do Jangadeiro e doutros inferninhos onde fazia mesa a esquerda festiva de Tom Jobim, João Gilberto e Chico Buarque (Pires, 1987; p. 23).

Alexandra acaba por representar a elite portuguesa do período antes e depois da Revolução, uma camada da sociedade que parece seguir sem refletir sobre o real rumo das coisas como se estivessem apenas sendo levados pelo fluxo dos acontecimentos. O espaço em que eles se encontram é interessante para ressaltar as características desse grupo. Suas personagens parecem viver em busca de uma definição de identidade, assim como a sociedade portuguesa daquela época de transição. A referência aos vultos no primeiro capítulo parece remeter a uma falta de identidade dessas figuras como se não tivessem personalidade própria:

Ao correr do balcão alinhava-se um coro de vultos diante e dum crocodilo tutelar que era de metal fosco e de laço de veludo ao pescoço e que estava, cheio de indiferença, ao alto da garrafeira, numa constelação de rótulos sagrados. Alguns dos vultos espelhavam-se nos dourados do conhaque, outros nos sangrentos do campari, era conforme; isto sem contar com os solitários que se interrogavam com o dedo nos icebergs do whisky, nem com os que se fechavam no silêncio-pérola da vodka virgem e menos ainda com os amargos e insuperáveis devotos da fernet branca que são sujeitos de natureza melancólica. Com gente dessa nada de misturas, Alexandra foi pela névoa até a mesa dos amigos (…) (Pires, 1987; pp. 25-26).

A multiplicidade de personagens e consequente pluralidade de vozes que compõem o romance mostram-se de muita relevância para traçar um reflexo daquele momento português e para exemplificar no livro a trajetória da Revolução. As personagens não se apresentam de maneira rígida e são suscetíveis a mudanças em suas personalidades de acordo com as situações em que estão inseridas:

Nos romances produzidos sob o regime, Cardoso Pires desvelou os mitos que o sustentavam e que sustentavam as relações de poder dentro dele. Agora, procura não mitificar o novo país, construindo um romance de múltiplas vozes que tenta incorporar formalmente a dimensão camaleônica da realidade em transformação. Assim, todo o grupo de intelectuais e de personagens marginais que circulam e falam nesse país-metáfora do Portugal pós-25 de abril compõem um discurso que inclui as múltiplas faces e as múltiplas vozes da alteridade (Pereira, 1999; sec. 1/1).

Assim como as personagens parecem acompanhar os rumos da história portuguesa daquele momento, apresentando modificações assim como aquela sociedade que após a Revolução ainda não tinha uma feição própria, ainda não era capaz de estabelecer e instaurar características fixas, o narrador do romance também parece seguir o mesmo fluxo que o coloca suscetível às transformações relacionadas ao contexto.

Durante a maior parte do livro observa-se um narrador heterodiegético e onisciente, que, apesar de não ser personagem da narrativa, consegue transmitir ao leitor os acontecimentos e conhece o interior das personagens. Ao longo do romance é narrado o cotidiano da elite portuguesa e a maneira como a Revolução vem se aproximando de suas vidas. A narração desse período é feita de maneira impessoal e em terceira pessoa.

Contudo, assim que o Movimento das Forças Armadas toma as ruas, há uma mudança completa no foco narrativo. “Estávamos desconfiados, pois a cidade apresentava-se numa aridez de morte” (Pires, 1987; p. 339). Com esta oração, o narrador de José Cardoso Pires abandona sua condição heterodiegética para se tornar homodiegético, (se não autodiegético), quando começa a descrever os acontecimentos da Revolução. Nestas páginas é como se personagens, narrador, autor e, por que não dizer, leitor também entrassem na grande celebração coletiva dos tempos revolucionários, do fim do longo e tenebroso inverno que representou a ditadura portuguesa.

Esse narrador homodiegético torna-se personagem da trama, narrando de maneira pessoal, utilizando a primeira pessoa do plural (nós) e participando do movimento que toma as ruas portuguesas. Cardoso Pires faz parecer, através da mudança do foco narrativo, que há a necessidade de uma nova voz para as esperanças de instauração de uma nova era que começa a partir do dia 25 de Abril. Com o anseio pela liberdade, até mesmo a voz acompanha a democracia, pluralizando a maneira de narrar o momento da Revolução:

A cidade apareceu ocupada e radiosa. Deparamos com colunas militares inundadas de sol; e o povo logo a seguir, muito povo, tanto que não cabia nos olhos, levas de gente saída do branco das trevas, de cinquenta anos de morte e de humilhação, correndo sem saber exatamente para onde mas decerto para a LIBERDADE! (…) Deste modo nos fomos, e por onde passávamos juntava-se mais povo, mais país, mais mundo. (…) Alexandra, os soldados, o povo inteiro, toda gente esbracejava num vendaval de alegria. (…) Tudo nos parecia um sonho dado de flor na mão (Pires, 1988; p. 275).

Percebe-se, porém, que a voz coletiva do narrador dura apenas algumas páginas, somente o momento eufórico do povo nas ruas fazendo a Revolução. Aquele grito coletivo pela liberdade logo retorna a um tom impessoal em terceira pessoa, presente no restante do romance. Considerando que o livro foi publicado 13 anos depois do evento, infere-se que Cardoso Pires tenha tido o intuito de mostrar, através do foco narrativo, que um pouco da esperança presente nos ideais revolucionários em busca de liberdade tenha se esvaziado com o período conturbado pós-revolucionário que foi constituído por golpes e tentativa de contrarrevolução.

A questão do voo é recorrente no romance. Há asa delta, o avião, o homem-pássaro, os quais parecem representar uma necessidade da liberdade, mas aliada ao fato de que voar não é da natureza humana, o que prova, por exemplo, o acidente de Waldir, logo no início do livro, com asa delta, como revivificação do mito de Ícaro, pois diz o texto:

Efetivamente, ele representava o castigo da vaidade de Ícaro transposta dos mitos antiquíssimos para as realidades do nosso tempo, sim, representava a expiação da vertigem de luxos, prazeres e devassidões em que vivia uma certa sociedade (Pires, 1987; p. 11).

Ícaro parece nos mostrar o sentido da punição divina em razão da ousadia, por justamente se tentar superar os limites impostos ao homem: voar é contra a natureza humana. Mas também Ícaro representa o pequeno instante de glória em que o humano pode se igualar aos deuses e alçar o voo. Logo após este instante, há o chamamento à permanente e dura realidade com o derretimento das asas e a queda do homem-pássaro momentâneo. É possível associar Ícaro, o homem-pássaro, ao império colonial português – o passado de glórias que durou somente até a União Ibérica, no domínio espanhol, na decadência. E mesmo a Revolução dos Cravos, rápido instante, mas imenso de grandiosidade, eivado de igualdade e liberdade, mas que logo decaiu na retrógrada vitória da reação nas urnas eleitorais portuguesas em 1976 e o fim do processo revolucionário. O sonho é o de alçar voo (a conquista), mas a realidade é o da espera (o sebastianismo), a saudade.

Ainda sobre Ícaro escreveu Eduardo Lourenço (2001) em A nau de Ícaro e imagem e miragem da lusofonia:

No Museu Real de Bruxelas pode ver-se um quadro de Peter Brueghel, o Velho, A queda de Ícaro. Apesar do caráter trágico da fábula, essa pintura exprime um sentimento de paz, quase de serenidade. O símbolo da ambição humana mergulha no mar no meio da indiferença de tudo o que o envolve, homens concentrados no seu trabalho, baía serena com algumas barcas, natureza adormecida como num sonho que acabaria melhor do que para Ícaro. À direita do quadro, não longe do ponto onde o herói desaparece nas águas calmas, sobressai uma imponente carranca pintada com a minúcia flamenga característica do grande pintor. Tal é a minúcia que podemos ver no alto dos mastros duas bandeiras com as armas de Portugal, o escudo com as “quinas”, em memória das cinco chagas de Cristo. Pode-se, sem forçar a imaginação, acreditar que estamos em Antuérpia ou em qualquer outro porto da Flandres nos anos 60 do século XVI. Portugal está então no auge da sua glória marítima e mercante. A sua presença no coração da Europa não escapa a um dos seus pintores mais originais, porque há já muito tempo que ela não espanta ninguém. Será preciso quase meio milênio para que, de novo, após um longo desvio por todas as praias do globo, do Brasil a Timor e ao Japão, a nau portuguesa regresse, como ao seu porto de origem, a esta Europa que depois de nós, ou conosco, se perdeu no mundo. Para acabar como Ícaro no meio da indiferença dos deuses e dos homens, punido por ter cumprido, em seu nome e em nome dos outros, um sonho para além das suas possibilidades? (pp. 44-45).

O homem-pássaro também possuirá, no livro, o seu duplo negativo. Esse duplo é o Loplop, personagem das gravuras de Max Ernst com o seu aviso permanente sobre os fascismos. Esse homem-pássaro zela o sono de Alexandra Alpha no seu quarto de dormir:

A mulher deitada:

Na parede estava espalmada a gravura dum homem-pássaro, de vez em quando ouvia-se um cântico de criança muito longínquo. Esta criatura (o homem-pássaro) vinha dos álbuns de Max Ernst e tinha máscara de falcão, bico e olhos de falcão; suspendia uma madona nua pelos cabelos. Tudo muito nítido no desenho. Violentamente nítido, até (Pires, 1987; p. 19).

Esta gravura está situada em cima da cabeceira da cama de Alexandra, em seu apartamento em Lisboa. Em outra perspectiva também traduz uma mensagem artística, já que a Arte tem um lugar primordial na vida da personagem, pois ela lê escuta música (Mahler, o Peter Grimes do Benjamin Britten gravado no palco do Covent Garden, Frank Sinatra). Beto, o filho de Waldir a quem ela adota e quase sequestra do Brasil destruirá a gravura deste homem-pássaro: “cobrira-o de punhais desenhados com crueldade, à imitação daqueles que o Max Ernst tinha cravado no corpo da mulher sacrificada” (Pires, 1987; p. 222).

No entanto, aquela imagem do homem-pássaro continua a ocupar um lugar de destaque na mente de Alexandra quer por ser símbolo da confiscação passional da sua perigosa relação com Waldir, quer por convocar a irracionalidade e as camadas subterrâneas do inconsciente que um corpo em liberdade lhe permite indagar sem limites, quer ainda por, de forma chocante, expurgar os medos. “A pintura de Ernst valoriza a erupção de uma mente, o inconsciente, o sonho, a alucinação, muitas vezes visualizável através da justaposição de imagens díspares ou grotescas, fundindo, por exemplo, o animal com o humano” (Serpa, 2019; p. 186).

Loplop é uma espécie de alter ego ou fantasma privado, de Ernst e aparecerá em: La femme 100 têtes (Ernst, 1929) e Une semaine de Bonté (Ernst, 1976). O homem-pássaro, como é apresentado por Cardoso Pires representa o fascismo salazarista, que condiz com o que é afirmado a respeito das telas do amigo de André Breton e um dos ideólogos do movimento surrealista, na França, pois suas telas remontam a motivos do romantismo alemão, mas também lançaram um futuro apocalíptico. Max Ernst viu o mundo barbaramente se autodestruir (na Guerra Civil Espanhola) e em suas obras parecia prever que isso aconteceria novamente no futuro.

Seu alter ego denunciará o futuro do mundo em sua tela terrivelmente perturbadora, intitulada de The angel of hearth and home (Ernst, 1937), a qual havia sido pintada em resposta ao triunfo do fascismo sobre a Espanha republicana, retratando o Anjo da morte, em uma dança de guerra, enquanto o encantado Loplop aplaude a estupidez da tolerância da humanidade. The angel of hearth and home representa o fascismo que há dentro de cada um de nós.

Em Ascensão e morte, no livro, o pássaro também se encarnará no voo que levará à morte alguns personagens, inclusive Maria Alexandra e retratando possivelmente o acidente de avião que vitimou na realidade o primeiro-ministro português Francisco Sá Carneiro, em 04 de dezembro de 1980, em circunstâncias até hoje pouco esclarecidas, tendo possivelmente sido vítima de um atentado a bomba, no avião em que viajava, o conhecido Caso Camarate que frustrou mais uma vez a expectativa de muitos portugueses.

Conclusão

Em Alexandra Alpha, há o desfilar deste período fundamental para a história de Portugal: a Revolução dos Cravos. Um período de libertação da nação portuguesa, o qual teve imensa repercussão pelo mundo a fora, começando pela independência das ainda colônias portuguesas na África: Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.

No livro, enxergamos também a mudança na sociedade portuguesa. Antes centrada em ideais rurais, de pobreza e simplicidade, mas com a Revolução modificados para a ampliação dos valores urbanos e de uma modernidade.

Marcante também é a adoção do narrador em primeira pessoa do plural, o que indica a participação do autor/narrador nos eventos narrados e a profunda concordância com os mesmos, o que indubitavelmente traz enorme emoção para o leitor e evidentemente a comparação do período revolucionário com um singelo voo: seja de Icaro, seja de asa delta, seja de um anjo. O livro nos convida a sonhar, mas questiona ainda mais a manutenção e a consolidação desses sonhos, pois os ideais, os pensamentos vão se transformando com o tempo e perdendo possivelmente a sua essência original.

Referências

Ernst, M. (1929). La femme 100 têtes. Editions du Carrefour.

Ernst, M. (1937). The angel of hearth and home. Em: https://www.wikiart.org/en/max-ernst/the-angel-of-hearth-and-home-1937

Ernst, M. (1976). Une semaine de Bonté. Dover Publications.

Lourenço, E. (2001). A nau de Ícaro ou o fim da emigração. Em: Lourenço, E. A nau de Ícaro e imagem e miragem da lusofonia. Companhia das Letras.

Pereira, M. L. S. (1999). Espaço em questão: Portugal no romance de Cardoso Pires. Revista Semear, Puc-Rio. Rio de Janeiro. 5, 1999. http://www.letras.puc-rio.br/unidades&nucleos/catedra/revista/5Sem_17.html.

Petrov, P. (2003). O realismo e os “realismos” na obra de José Cardoso Pires. Scripta. Revista do programa de Pós-graduação em Letras e do Centro de Estudos Luso afro-brasileiros da PUC Minas. V. 7, número 12, 2003. http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/12487/9800.

Pires, J. C. (1987). Alexandra Alpha. Publicações Dom Quixote.

Pires, J. C. (1988). Alexandra Alpha. Companhia das Letras.

Pires, J. C. (2011). Jogos de azar. Editora Bertrand Brasil.

Serpa, A. I. (2019). A narrativa de José Cardoso Pires: personagem, tempo e memória. [Tese de doutoramento da Universidade dos Açores].  https://repositorio.uac.pt/bitstream/10400.3/2894/3/TeseDoutoramentoAnaIsabelSerpaVF2014.pdf.

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